O silêncio depois dos tiros
Enquanto as manchetes contam corpos, os discursos políticos disputam cortes virais
Na última semana, uma operação policial mobilizou mais de 2.500 agentes no Rio de Janeiro e deixou ao menos 121 mortos, segundo a Defensoria Pública. Um número que deveria paralisar o país, mas que, no Rio, se mistura à rotina. A cidade aprendeu a continuar mesmo quando está em luto.
A cada nova ação, o medo muda de endereço. As comunidades se trancam, os bairros mais seguros mudam de rota e a cidade desperta há muitos anos com a possibilidade de uma bala perdida.
O cotidiano revela a face mais silenciosa desse trauma coletivo. As pessoas saem sem bolsas, correntes ou relógios, como se o disfarce fosse uma forma de sobrevivência. A vida segue, mas nunca relaxa. É a mente tentando manter o equilíbrio em um ambiente onde o imprevisível se tornou previsível.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde do Rio, os atendimentos relacionados à saúde mental nas unidades de urgência e emergência da cidade cresceram 24% desde o ano passado. Síndromes do pânico, crises de ansiedade, transtornos de humor e até surtos psicóticos se tornaram respostas do corpo e da mente a uma cidade que vive em estado de alerta.
Entre policiais, o cenário também se agrava: o número de atendimentos psicológicos dentro da própria corporação quase dobrou. O trauma não escolhe lado — alcança quem está nas vielas e quem veste farda.
Nesse cenário, proteger a própria estabilidade mental representa um desafio necessário à sobrevivência. O primeiro passo é reconhecer o impacto. Sentir medo, tristeza ou exaustão não é fraqueza; é uma resposta natural ao trauma. O excesso de informação também pode, em alguns momentos, ser prejudicial. Por isso, escolher momentos específicos para se informar protege a mente de um estado de alerta constante.
Para ajudar a retomar a sensação de controle, é importante criar pequenos rituais de segurança, como avisar rotas, manter contato com familiares, evitar exposição desnecessária. O sono, a alimentação e a respiração consciente também funcionam como âncoras em meio ao caos.
Além disso, procure apoio psicológico. Muitos CAPS e unidades básicas de saúde no Rio oferecem atendimento gratuito. Cuidar da saúde mental, hoje, é também uma forma de permanecer vivo em um lugar que aprendeu a sobreviver em silêncio. Mas, para além de medidas individuais, é urgente pensar em soluções sistêmicas para as comunidades, que vivem uma distorção profunda.
A segurança, que deveria ser garantida pelo Estado, é imposta por quem o desafia. Em muitos territórios, a criminalidade define regras, horários e punições, e é quem dita o que se entende por ordem. A presença policial ali é personagem de ficção, quase uma encenação: agentes só podem circular sem colete ou armamento, numa trégua silenciosa que revela quem realmente controla a fronteira. O medo se tornou o regulador da convivência, e outros protagonistas passaram a exercer o papel de uma lei diferente no país. Entre acordos e silêncios, a população aprende a negociar o próprio sossego, reclusos, tentando preservar o mínimo de estabilidade possível dentro do caos.
Enquanto isso, fora desses limites, a discussão pública se divide. De um lado, quem defende a rigidez das operações. De outro, quem denuncia a ação. No final, o dia seguinte, permanece com a lei regida pelo crime.
A disputa não é por território, mas pela narrativa política. Interesses pela defesa são transformados em frases performáticas com melhores cortes. Quem viraliza? Se torna certo diante de um bem e mal distorcido. Cada versão tenta se sustentar sobre a dor que, de fato, deveria ser de todos.
O Rio é a cidade que exibe o pôr do sol como vitrine mas, o único produto em estoque é o medo. Entre o som do mar e o eco dos tiros, o que se vê é um Brasil dividido entre o espetáculo e o silêncio. Enquanto famílias fogem sem saber se voltarão, há quem dispute manchetes com frases de efeito, tentando transformar tragédias em cortes virais. Talvez o verdadeiro perigo não esteja apenas nas ruas, mas na frieza de quem ocupa altos cargos e confunde poder com audiência.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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